Bernardo Fernandes na "Dica do Treinador"



O segundo treinador a dar a sua "dica" é Bernardo Fernandes, diretor técnico dos holandeses do Venlose Hockey Club. O cascalense incide a sua análise no coaching como ferramenta para atingir o sucesso, e no envolvimento de todos os atletas na definição da estratégia de desenvolvimento e crescimento da equipa nas suas diferentes vertentes (técnica, tática, física, etc.).

Recordamos que os treinadores que quiserem dar a sua "dica" devem enviar um documento com o conteúdo proposto para mcastro@fphoquei.pt

Outra forma de coaching
 
Antes de começar com a minha contribuição, gostaria de deixar um elogio a esta rubrica da Federação Portuguesa de Hóquei pela tentativa de uma maior interação entre aqueles que tem um papel decisivo no desenvolvimento de qualquer modalidade: os treinadores.
O hóquei em campo é, entre todos os desportos, seguramente um dos que mais dinamismo e evolução apresenta, numa permanente procura de tornar o jogo mais competitivo para quem disputa e mais espetacular para quem observa.
Se atendermos à história recente da modalidade, percebemos que houve diversas alterações, algumas delas bastante radicais, ao nível das regras (abolição do fora-de-jogo, auto passe, substituições ilimitadas, introdução de tecnologia como o vídeo-umpire, etc) assim como mudanças nos materiais no fabrico dos sticks, guarda-redes, relvados sintéticos, etc.
Hoje em dia, todos nos congratulamos e aceitamos que todas estas inovações tornaram este desporto mais excitante, porém, para este processo evolutivo se realizar teve de existir dentro da comunidade hoquista um grande sentido autocritico (podemos melhorar?; onde podemos melhorar?; é possível tornar o jogo mais rápido e mais atrativo para intervenientes e espectadores?) em conjunto com uma enorme predisposição para a mudança.
Ao compreender que o sentido autocritico e a capacidade de adaptabilidade são partes indissociáveis da natureza atual do hóquei, entendo que estas duas características sejam também indispensáveis na liderança de uma equipa de hóquei.

Eu (treinador) e Eles (jogadores) ou Nós?
 
Nós, treinadores (ou a maioria), temos a legítima e bem-intencionada presunção de que preparar os nossos atletas para competirem da melhor forma possível passa fundamentalmente pela transmissão dos nossos conhecimentos, da nossas conceções sobre as situações que podem acontecer durante o jogo, assumindo que pela nossa experiência, pelo nosso estudo e (porque não?) por uma natural vocação para liderar, lhes estamos a fornecer as melhores ferramentas para cada e determinado acontecimento no jogo.
Criamos dessa forma uma plataforma de relacionamento onde invariavelmente existe um emissor (treinador) que transmite uma mensagem (ideologia de jogo) ao seu recetor (jogadores), sendo que este último se limita, portanto, a absorver e tentar replicar a mensagem transmitida pelo primeiro.
Muitos de nós, em consciência ou não, colocamo-nos numa posição quase ditatorial, passo a expressão, assumindo que a nossa função enquanto treinador se resume a ensinar a fazer, e não, ensinar a pensar. Este é, quanto a mim, um estilo antiquado, antipedagógico e até contraproducente, no sentido em que condiciona a capacidade de raciocínio e decisão individual dos jogadores, diminuindo a possibilidade de cada um se aproximar do seu total potencial como indivíduo (se eu não pensar por mim próprio, dificilmente serei capaz de me expressar na totalidade das minhas capacidades.)
Um dia normal de treino, provavelmente consiste em planear e preparar o treino, receber o grupo de jogadores, mandar executar o exercício “X” e “Y”, corrigi-los, ensaiar a tática “A” e “B”, esperando que no jogo do fim-de-semana tudo vá de encontro ao planeado. Infelizmente sucede que normalmente, e em especial para equipas que estão formatadas neste estilo ‘militarizado’ de entendimento do jogo, as situações imprevisíveis que acontecem no decorrer de qualquer jogo são um obstáculo bastante difícil de ultrapassar, pois estes jogadores estão habituados a seguir ordens e não a tomar decisões, a se adaptarem.
“Gostava que os meus jogadores pensassem como treinadores” e “Queria apenas trabalhar com jogadores inteligentes” são alguns clichés habituais, mas serão os treinadores que proferem essas frases (de alguma forma pejorativas para eles próprios…), capazes de fazer uma autocritica sincera?
Será que no meu papel de líder estou a estimular os jogadores de uma forma onde eles estão “autorizados” (e estimulados) a usar a sua inteligência?
Estou a permitir que os meus jogadores pensem sobre o jogo? Estou a criar espaço ao questionamento, à dúvida, à discussão, à reflexão, à sugestão, à decisão, etc?
No último verão, tive a oportunidade de assistir a um curso de treinadores da FPH cujo preletor era Norbert Nederlof, reputado treinador Holandês. Foi bastante interessante e simultaneamente inspirador aprender sobre a conduta que o Norbert adotava nos treinos com as camadas jovens, estando em permanente questionamento e discussão de ideias com os jovens aprendizes, contrariamente ao estilo autoritário e autocrático que anteriormente refiro como errático.
Devo referir que foi absolutamente fascinante e compensador utilizar essa fórmula e descobrir a surpreendente capacidade de autoanálise e autocorreção mesmo em crianças de 10/11 anos, mesmo nas mais complexas variantes técnicas.
A criação da dúvida, a reflexão e a eventual discussão entre jogador e treinador, sobre diferentes áreas do jogo, quer seja em aspetos técnicos (porquê escolher um passe de push em curta distância e um flat em média/longa distância?), táticos (porquê tentar canalizar a bola de saída do adversário para o nosso lado direito?) ou físicos (porquê correr ‘shuttle-runs’ ou efetuar exercícios baseados em intervalos aeróbicos durante os treinos?) estimulando a sua capacidade de raciocínio permite um maior entendimento de certos princípios e especificidades de jogo e treino, atingindo o objetivo de ter uma equipa de jogadores “inteligentes” ou “jogadores-treinadores”.
Se acreditarmos, como eu acredito, que uma equipa tem mais possibilidades de ser bem-sucedida se individualmente os jogadores forem mais atentos, mais intrinsecamente conhecedores do jogo e que a qualidade de cada jogador se mede mais pelo seu critério de decisão do que pelas suas características físicas ou técnicas, faz então sentido optar por um estilo de coaching que se abre ao coletivo, que diminui a distância hierárquica entre treinador e jogadores, onde a permanente reflexão e participação do jogador não é apenas parte essencial, mas talvez, a mais importante.
 
O culto da imprevisibilidade
 
Desde que comecei a viver na Holanda, foi interessante e importante perceber, desde cedo – principalmente em comparação a outros países que conheço bem como Portugal ou Espanha – um traço sociocultural relacionado com um alto índice de “aversão à incerteza”.
A “aversão à incerteza” é visível e manifesta-se com clareza através de algumas características no comportamento da sociedade Holandesa: forte capacidade de planeamento, maior delegação de responsabilidades, um entendimento estrutural/organizacional aplicado a todas as áreas e naturalmente uma estrita disciplina no cumprimento de datas, horários e compromissos, sejam eles formais ou informais.
Ainda que essa mentalidade faça da Holanda um país extremamente dinâmico em termos económicos e laborais, por outro lado, é também um facto que os países com um alto índice de “aversão à incerteza” tem sociedades onde as pessoas não gostam de correr riscos e preferem a segurança nas suas rotinas, o que se reflete também na forma como estas pessoas se relacionam e se comportam no desporto.
Em países onde a cultura organizacional não está assente em bases tão rígidas, onde nem sempre o plano “A” prevalece, as sociedades são forçadas a desenvolver uma maior capacidade de adaptação, de improvisação ou – se lhe quisermos chamar – de “desenrascanço”, sendo portanto que nessas sociedades assim como no desporto, o culto da imprevisibilidade é uma realidade bastante presente, e os cidadãos, assim como os atletas, desenvolvem-se numa base onde o talento e o instinto são ferramentas indispensáveis para o sucesso.
É minha convicção, como treinador, que uma equipa terá sempre maior probabilidade de sucesso se as unidades que a compõem estiverem preparadas para respeitar algumas diretrizes ou rotinas indispensáveis para obter uma estrutura e uma fluência de jogo desejável, mas principalmente se cada membro que compõe essa equipa se puder expressar no máximo do seu potencial individual. Para tal, tentarei abordar de forma sucinta, nesta rubrica, o que considero mais importante:
1. A maior envolvência dos jogadores (de forma orientada e sustentada) no coaching de forma a encontrar uma plataforma base onde o jogador se torna mais critico, mais entendedor, mais conhecedor, mais “treinador” portanto, mais capaz de tomar melhores decisões durante os jogos;
2. Fomentar uma cultura de treino e jogo que estimula o desenvolvimento instintivo e criativo individual fundamentalmente assente na reação/adaptação ao imprevisível.
A seguir apresento algumas ações que utilizei no sentido de tentar reforçar as áreas da autocrítica, responsabilidades individuais e coletivas, bem como a compreensão de determinados conceitos de jogo e metodologias de treino (sempre com a devida supervisão e acompanhamento):
1. Delegar a responsabilidade de planeamento e execução de treino aos atletas:
a) Depois do jogo – correção/aperfeiçoamento;
b) Antes do jogo – preparação/planeamento/estratégias.
2. Reduzir as minhas intervenções durante os jogos-treino:
a) Atribuir a capacidade de fazer eventuais correções entre os jogadores;
b) Estimular o team talk, o coaching e o feedback entre os jogadores.
3. Delegar aos atletas a inteira responsabilidade na decisão de estratégias de jogo:
a) Ex: Se equipa X defende os cantos curto de certa forma, quais as melhores estratégias ofensivas a utilizarem?
4. Colocar os atletas perante situações de stress/imprevisibilidade:
a) Num jogo de treino, não dar qualquer indicação à equipa, forçando os atletas a preparem o jogo, definir estratégias, darem instruções antes do jogo, no intervalo e feedback no final do jogo;
b) Planear e apresentar o treino de uma forma e alterar constantemente o plano inicial.

Bernardo Fernandes
Diretor Técnico, Trainer e Coach da primeira equipa masculina sub16, e Assistant Coach e Trainer da primeira equipa feminina do Venlose Hockey Club da Holanda

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